esquecendo olhares


As vezes um suposto erro que você cometeu constrói, em você, a vontade de desaparecer, mas acho que no meu caso, muito mais do que a vontade, esse meu erro materializou a minha própria fuga. Olho através da porta do quarto do meu namorado e não vejo a sala, que era o que deveria estar ali, vejo um beco, um beco de uma cidade grande que está sendo banhada pela luz do luar. Mas é uma manhã de domingo, eu e meu namorado estamos em seu quarto, na casa dos pais dele, localizada em um sítio no interior do estado, mas eu estou em pé em frente a uma porta que aparentemente me levará para um lugar que fisicamente não está ali, enquanto isso, meu namorado dorme um sono profundo, e eu não me sinto segura de acorda-lo para mostre-lhe aquilo. Talvez aquilo seja apenas um sonho, quero acreditar que seja um sonho, porque aquele beco me é familiar, me traz lembranças, lembranças que nunca contei ao meu namorado, lembranças que na verdade eu prometi nunca contar a ele. O beco, que naquele momento está abraçado pela noite, me remete a lembrança de quando viajei para a cidade, um grande par de olhos castanhos me foram apresentados por lá. O dono dos olhos castanhos era filho de conhecidos dos meus pais. Não lembro de nem uma palavra dita pelos olhos castanhos, não lembro sequer seu nome, eu estava ludibriada apenas pelo seu charme e pelo seu olhar, eu estava atraída por ele, e o seu olhar me guiou até aquele beco da cidade, aquele olhar me guiou por momentos inesquecíveis de prazer naquele beco... bem, depois eu realmente quis conhecer melhor os Olhos Castanhos, mas meus pais disseram que era melhor manter distância deles, foram prevenidos pelos pais dos Olhos Castanhos que ele tinha alguns problemas que ainda estavam sendo tratados. Então, nunca mais vi Olhos Castanhos e guardo segredo sobre o beco desde então, nem meus pais, nem meu namorado e nem minhas amigas sabem daquilo.

               Começo a desejar experimentar de novo os bons momentos naquele beco, lembro que mesmo sendo de noite, estava quente e acolhedor ali, o cheiro era de asfalto recém molhado pela chuva rápida e repentina e se ouvia ao fundo uma composição de Saint-Saens, o Carnaval dos Animais, se não me engano, era O Cisne, tocada por um belíssimo violino vindo de alguma festa perto dali. Retorno meu pensamento para o quarto onde estou, olho para o meu namorado para me certificar que ele estava dormindo ainda e penso em qual o mal de atravessar aquele suposto portal. Se for apenas a minha imaginação, eu irei aparecer na sala como esperado, iria tomar um copo d’água e voltaria a dormir e me esqueceria daquilo. Mas se for realmente minha imaginação e na minha travessia eu esteja me entregando a alguma loucura minha? Quer dizer que todo esse tempo, por eu ter guardado um segredo, minha mente acabou desenvolvendo alguma insanidade, alguma psicopatia? Penso que não. E a última alternativa disso tudo, é que esse portal seja real. Que esse beco esteja logo ali. Que mesmo a quilômetros de distância, por capricho do destino junto com a força das minhas vontades reprimidas, aquele beco esteja a um passo de distância. E se realmente for real, qual o mal de atravessar? Talvez eu finalmente reveja Olhos Castanhos.
                Verifico novamente o sono do meu namorado, olho para o beco através do portal e, de olhos fechados, transpasso ele duvidando de todas as provas físicas da impossibilidade daquilo. Antes de abrir os olhos, reparo que não sinto o cheiro de asfalto molhado, mas de uma forte ferrugem, ouço ao invés de um belo violino, latidos de cachorros eufóricos juntos a um som de arranhão em metal que fica se repetindo constantemente, também sinto que está muito frio. Ao abrir os olhos vejo, entre a sombras, Olhos Castanhos me fitando, mas vejo realmente, apenas os seus olhos castanhos olhando diretamente para mim, e ele está em meio a escuridão da noite e apenas o seus grandes olhos brilhantes são visíveis. Uma sensação horrível toma conta de mim e eu viro para voltar ao quarto do meu namorado pelo portal, mas me deparo apenas com uma parede, o portal sumiu, e aquilo me deixo desesperada. Quando volto para olhar novamente para os olhos castanhos que estavam na escuridão, percebo que dessa vez eles estão mais próximos, a um palmo de distância apenas, então consigo ver a silhueta de algo estranho, incompreensível para a mim, talvez uma cabeça de algo parecido com um búfalo, mas com algumas coisas que aparentavam ser estacas de madeira saindo por toda a extensão do que insinuava ser seu crânio. Os olhos castanhos continuavam lá, incontestáveis, a me olhar. O que parecia ser o resto do corpo daquela criatura, não tinha membros, era apenas um bloco coberto por uma coisa escorrendo, um tipo de gosma vermelha que começava a empoçar no chão. E como por feitiçaria, eu fui estranhamente obrigada a olhar apenas para os olhos castanhos, e tudo ao meu redor começou, muito lentamente, a escurecer e os sons começaram a ser silenciados, e isso durou pelo que pareceu ser uma hora, até eu que eu não pude ver mais nada, nem mesmo a criatura, a não ser os seus olhos castanhos que pareciam estar flutuando em meio a escuridão, então eles se fecham...
                Desde então estou aqui em um lugar escuro e silencioso, não conseguindo me mexer, mas não falo que estou sozinha, porque eu sinto a presença dele, a gosma que escorria do seu corpo está empoçando em volta dos meus pés, e eu sei que ele está me observando, mesmo eu não podendo ver nunca mais, os seus olhos castanhos.